Patrícia Braille, criadora do projeto #PraCegoVer incentiva a descrição de imagens na web

Professora baiana defende a disseminação da cultura da acessibilidade nas redes sociais para apreciação das pessoas com deficiência visual

Patrícia Silva de Jesus, mais conhecida como Patrícia Braille, é professora de Braille desde os seus 16 anos de idade e tem muitos amigos cegos. Quando entrou para o Facebook, ela logo teve a necessidade de se comunicar com eles, por meio de imagens, em suas redes sociais. O projeto #PraCegoVer, criado oficialmente por ela em 2012, nasceu nesse contexto.

“Eu não me permitia postar fotos sem descrever, do mesmo modo como fazia em meu blog, o Patricitudes. Pela passagem do aniversário do criador do Sistema Braille, Louis Braille, criei um evento virtual no Facebook chamado ‘Pra Cego Ver’ no 4 de janeiro de 2012, convocando pessoas a experimentarem descrever para um cego. Foi um sucesso! Em seguida criei a página para não deixar a ideia cair no esquecimento. Em resumo: ‘enxergar’ a existência de pessoas com deficiência nas redes sociais foi minha motivação”, disse.

O #PraCegoVer é um projeto de disseminação da cultura da acessibilidade nas redes sociais e tem, por princípio, a descrição de imagens e a audiodescrição para apreciação das pessoas com deficiência visual. Quem acessa a página do Projeto no Facebook, logo encontra dois avisos em destaque. Principalmente para as pessoas entenderem o contexto do uso da hashtag.

#PraCegover é um trocadilho. Como essa hashtag tem uma função educativa e inclusiva, ela se refere aos videntes que não enxergam o cego e nunca se dão conta de que pessoas com deficiência visual usam redes sociais. Ela existe para impactar, para despertar o olhar de quem lê e se pergunta: “Ué, pra que raios esta descrição está aqui?”. Então vai pesquisar mais um pouco e… Zaz! Mais um vidente deixou de ser “cego”. Existe, principalmente, para o cego ou pessoa com deficiência visual/baixa visão que, pela falta de acessibilidade, não podia apreciar as imagens publicadas.

Não, a descrição não faz a pessoa cega literalmente enxergar. É, mais uma vez, um jogo de palavras, um empréstimo da palavra “ver” no sentido de “ter acesso” a algo. Ouvir uma descrição não substitui a visão. Nem mesmo o tato, como muitos acreditam, seria capaz de substituir o ato de enxergar, na exata medida em que os olhos o fazem.

O Movimento Web Para Todos conversou com Patrícia sobre a importância deste recurso de acessibilidade digital, os bastidores do projeto e também para explicar um pouco mais sobre essa hashtag tão comentada e usada nas redes. Confira, abaixo, a entrevista completa.

Web para Todos: Quais desafios você já precisou enfrentar desde a criação do projeto?

PatríciaO maior desafio foi ir de inbox em inbox, sugerindo às empresas, constituídas de pessoas leigas em inclusão e acessibilidade, a adoção da prática da descrição de imagens, quando nem os profissionais de acessibilidade e audiodescrição faziam isso em seus conteúdos.

Qual tem sido o feedback das pessoas com e sem deficiência em relação ao projeto? O projeto nasceu realmente em 2012?

Meus amigos videntes acharam muito esquisito eu “perder tempo” descrevendo imagens que eles já estavam vendo. Eles não entendiam que era para os cegos que eu fazia aquela ação e eu tive que explicar muitas vezes. As pessoas cegas acharam fabuloso e me escrevem coisas bonitas como “obrigada por me permitir ver por meio de seus olhos”. Eu fico muito grata. Tem ainda aquelas pessoas, amedrontadas pelo politicamente correto, que censuram o uso da palavra “cego” na hashtag. Acham ofensivo, mas nunca perguntaram às pessoas cegas se isso as ofende, e seguramente não ofende. Recebo mensagens de videntes elogiando e pedindo ajuda para começarem a descrever também. Tem sido tão bom… Mas tem o lado triste também, que é quando empresas e outros órgãos anunciam o projeto como uma ideia deles ou modificam a hashtag para “FulaninhoAcessivel”, colocando a marca em destaque e não a pessoa com deficiência.

Qual é o impacto do projeto?

Ele modificou o comportamento na internet definitivamente. Grandes e poderosas corporações nacionais e internacionais aderiram e, com o tempo, acredito firmemente, mais e mais pessoas vão acrescentar esse recurso em seus posts. Seja da forma como hoje fazemos, seja com tecnologias a serem desenvolvidas, a audiodescrição já se estabeleceu como indispensável, principalmente para os que têm deficiência visual.

Como foi a sua preparação para esse projeto?

Eu fui consultora da Unesco por alguns anos e minha atuação era com livro acessível. Formava professores para produção dos livros e isso envolvia ensinar também a descrever as imagens. Era, inicialmente, tudo baseado em leituras e na minha vivência com pessoas cegas e com baixa visão, mas veio a necessidade de me qualificar profissionalmente e eu fiz muitos cursos e oficinas em instituições e universidades da Bahia e de São Paulo. Até hoje, leio bastante e submeto meu trabalho à aprovação do público com deficiência. É o diferencial. Eles criticam e isso me ajuda muito.

Qual é a sua expectativa em relação a ele?

Espero que mais e mais pessoas se sensibilizem e se qualifiquem para a importante prática da audiodescrição. Recentemente #PraCegoVer passou a fazer parte da lei municipal 10.668/2018 de Fortaleza, que estabelece que toda página de serviços públicos deve utilizar a hashtag com descrição de imagem. Espero que vire lei federal.

Como fazer parte do Projeto #PraCegoVer?

Basta investir nos estudos de audiodescrição – e eu indico várias leituras no post fixo da página – fazer uns cursos e usar livremente a hashtag, que é também uma forma de chamar a atenção das pessoas, por ser provocadora, irreverente.

Conte um pouco sobre sua experiência na área da acessibilidade.

Quando eu tinha 16 anos e fazia Magistério, conheci muitas pessoas cegas na escola: estudantes secundaristas, como eu, que recebiam atendimento em uma Sala de Apoio Pedagógico. Quando vi a escrita Braille, fiquei encantada e comecei a aprendê-la sozinha. Escrevia em Braille e mostrava aos meus amigos cegos, para eles me dizerem se estava tudo certinho. Foi uma experiência determinante em minha vida. Tudo que fiz profissionalmente e na vida pessoal tem alguma ligação com acessibilidade e produção de livros para cegos. Hoje, coordeno a Educação Inclusiva na Secretaria da Educação do Estado da Bahia, mas já fui consultora da Unesco, dei aula em diversas universidades e ministrei cursos de descrição de imagem, braile e afins em quase todo o Brasil.

De que forma você percebe a importância da acessibilidade digital?

O mundo digital é infinito em possibilidades de interação. Ele reflete bem o ideal de inclusão, de mundo sem fronteira, de encurtamento de distâncias. Isso acontece apenas se houver acessibilidade a internet terá cumprido seu papel. Acessibilidade não é acessório, é item de primeira necessidade.

O que falta para que a acessibilidade digital realmente aconteça?

Falta consciência. Nem todas as pessoas conhecem a audiodescrição/descrição de imagem. Muitas, atormentadas pelo politicamente correto, consideram a hashtag pejorativa, sem ao menos perguntarem aos cegos o que eles acham. O acesso às imagens não é tudo no oferecimento de acessibilidade às pessoas cegas, pois mudança de consciência não se dá por decreto. Falta muito para sensibilizar a sociedade. Mas falta menos do que ontem. Cada um vai doando o que pode. Esta é uma das minhas doações.

Entrevista publicada em 03/2018.

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